Historicamente, o cinema impôs uma relação unidireccional entre autor e espectador, condicionada por limitações técnicas que impediam qualquer forma efectiva de participação. A materialidade da película, enquanto suporte analógico fixo, tornava a obra inalterável após a sua finalização. Os processos de produção e montagem exigiam equipamentos especializados e um elevado grau de domínio técnico, o que excluía intervenções externas ao circuito profissional. Paralelamente, a distribuição era centralizada e a exibição ocorria em salas concebidas para a contemplação, sem espaço para interacção ou modificação. Não havia opções de consumo individualizado (como assistir em casa), o que limitava a autonomia do espectador. Só com o advento do digital e das plataformas colaborativas é que se tornou possível imaginar o espectador como agente interveniente dentro da própria obra.
A digitalização veio não só reduzir significativamente os custos de produção audiovisual, como também, através da crescente integração dos objetos fílmicos na rede, facilitou a sua distribuição e permitiu a sua individualização. Neste novo contexto técnico e cultural, o filme já não precisa de manter-se como um objeto fixo e pode agora apresentar-se como uma entidade mutável, potencialmente única em cada reprodução. No entanto, a maioria dos conteúdos atualmente disponíveis em formato digital continua a reproduzir os mesmos modelos de reprodutibilidade técnica do passado, sendo ainda raro encontrar exemplos de obras mutáveis nas grandes plataformas de streaming. Esta persistência não decorre de limitações técnicas, mas sim de conveniências enraizadas em hábitos culturais que tanto a indústria cinematográfica como os espectadores ainda não abandonaram.
O filme propõe-se como um espaço público digital, ao reunir fragmentos audiovisuais provenientes de diferentes utilizadores, promovendo uma conversação entre perspetivas distintas e uma fricção entre planos. Esta dinâmica pode dar origem a encontros fortuitos de ideias e significados, não previstos à partida. A aleatoriedade surge, assim, como uma consequência natural desses encontros inesperados, que, à semelhança do que ocorre nos espaços públicos físicos, não seguem uma lógica programada, mas antes potenciam a emergência de novas ideias a partir da interação entre diferenças.